Ministério do Esporte Confira o 18º texto da série de crônicas de Nelson Rodrigues
Ir para conteúdo 1 Ir para menu 2 Ir para a busca 3 Ir para o rodapé 4 Página Inicial Mapa do Site Ouvidoria Acessibilidade MAPA DO SITE ALTO CONTRASTE ACESSIBILIDADE

|   Ouvidoria   |

 
Conheça os principais programas e ações da Secretaria Especial do Esporte.
Videorreportagens, textos e fotos mostram como os projetos são colocados em prática e os resultados alcançados em todo o país.

Informações:  (61) 3217-1875E-mail:O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

                          

Confira o 18º texto da série de crônicas de Nelson Rodrigues

O portal do Ministério do Esporte publica até o mês de junho, às vésperas da Copa do Mundo, uma série de crônicas escritas por Nelson Rodrigues entre as décadas de 1950 e 1970. Os textos foram publicados no livro “A Pátria de Chuteiras”, lançado em 9 de dezembro pelo ministro do Esporte, Aldo Rebelo.

São 40 crônicas selecionadas pelo próprio ministro em um trabalho de pesquisa de mais de um ano. O futebol foi a metáfora utilizada por Nelson Rodrigues para a apresentação e a divulgação de um Brasil eficiente e vitorioso.

Confira abaixo a 18ª crônica da série: “O grande sol do escrete”. O site do ministério publica dois textos por semana, aos domingos e às quintas-feiras.

"Disse Rilke que a glória, o que chamamos glória, é a soma de mal-entendidos em torno de um homem e de uma obra. E não só a glória. Também a desonra pode ser outra soma de mal-entendidos."

O grande sol do escrete (1)

Disse Rilke que a glória, o que chamamos glória, é a soma de mal-entendidos em torno de um homem e de uma obra. E não só a glória. Também a desonra pode ser outra soma de mal-entendidos. Qualquer um de nós já amou errado, já odiou errado. Eu próprio, certa vez, desprezei um homem, tive por esse homem a maior náusea ética. Não podia vê-lo sem que minha úlcera desse pulinhos de rã. Sem fazer segredo do meu horror, chamei-o, em público, de cadáver moral.

Eu teria, na ocasião, 17 anos. E o adolescente vive de falsos horrores. Tempos depois, verifiquei que estava errado, errado de alto a baixo. O homem que eu supunha infame era, na verdade, uma dessas nobilíssimas figuras exemplares, um falso defunto moral. Quase um santo.

Eis o que eu queria dizer: — dedico esta crônica aos equívocos que, em certos casos, inauguram a estátua e, em outros, desencadeiam a vaia. Começarei falando de Pelé, o divino crioulo.

Muitíssimas vezes, Pelé foi estátua e, muitíssimas vezes, foi vaia. Eu me lembro de um jogo do escrete em que jogou mal ou, como diz a gíria, jogou pedrinhas. E, no fim de certo tempo, explodia a ira da multidão. No futebol, a apoteose está sempre a um milímetro da vaia. Não sei se todos se lembram de um fato muito curioso. Num jogo Brasil x Inglaterra, aqui, no ex-Maracanã, ao ser anunciado o nome de Julinho, todo o estádio vaiou. Mas começa o jogo. Julinho fez uma série de jogadas perfeitas, irretocáveis. Em dez minutos, o que era humilhação passou a ser apoteose. E assim Julinho teve a fulminante reabilitação.

Volto a Pelé. Repito que, naquela tarde, ele foi pouquíssimo Pelé. E, então, começou a fúria popular. A ninguém ocorria que o supercraque não precisa jogar bem. O perna de pau é que tem de se matar em campo. De mais a mais, o gênio pode ter as suas nostalgias da burrice. Em outro plano, Sartre, o grande Sartre, andou por aqui e disse coisas de que se envergonharia Luvizaro. Podia dizê-las, porque era Sartre. Por exemplo, afirmou o grande homem: — “O marxismo é inultrapassável”. O já citado Luvizaro não diria isso. Ele sabe que, daqui a quinze minutos, o marxismo pode estar ultrapassado por coisa muito melhor. Mas o que sabe Luvizaro Sartre pode ignorar, porque é Sartre.

E, em qualquer clássico ou pelada, Pelé pode fazer tudo, porque é Pelé. Se abrir a Revista do Rádio (2) no meio do campo, estará usando um dos privilégios do gênio. Mas a multidão não perdoa, em Pelé, um passe errado. Se vinha o adversário e frustrava o seu drible, Pelé era quase apedrejado como uma adúltera bíblica. Éramos, ao todo, umas 150 mil pessoas. E dizíamos, uns aos outros, que Pelé já não era o mesmo. Houve um, mais afoito, que declarou: — “Pelé está morto.”

Ninguém protestou. Ou por outra, houve, sim, um protesto. Estava lá o Manoel Duque, que reagiu e gritou: — “Pelé continua sendo o maior jogador do mundo.” E, como um outro resmungasse, o Duque repetia: — “O maior jogador do mundo, em todos os tempos.” Mas, como ia dizendo: — vaiaram Pelé os noventa minutos. Posso dizer que influiu na vaia, além do mais, um certo cansaço, um certo tédio do mito. A multidão precisa destruir os mitos que promove.

A partir de então, não só o homem de arquibancada, também os “entendidos”, também os técnicos, também os cronistas começaram a meter a picareta na estátua de Pelé. Tem sido uma alegre demolição. O crioulo passou a ser o responsável por todos os males que afligiam a seleção. Fui a um sarau de grã-finos e lá ouvi alguém jurar: — “Pelé morreu para o futebol.”

Chegou a correr a notícia de que seria barrado do escrete e do Santos. Ou por outra: — do Santos, não, porque seu nome ainda é bilheteria. Cheguei a imaginar que, humilhado, ofendido, ele próprio saísse da seleção. Mas diz a minha vizinha gorda e patusca: — “Nada como um dia depois do outro.”

Já na classificação, Pelé teve momentos de Pelé. Mas insistíamos, obsessivamente: — “Não é o mesmo! Não é o mesmo!” E, para todo mundo, menos o Manoel Duque, já deixara de ser o maior jogador do mundo. Duque vivia repetindo: — “Mesmo jogando a metade do que sabe, ainda é o maior.” Até que chegou a primeira partida do Brasil, na Copa contra os tchecos. Ora, segundo todos os críticos de futebol, a Tchecoslováquia era um dos mais formidáveis concorrentes ao título mundial. Enquanto o Brasil se preparava em quinze dias, ela se cuidou durante quatro anos. Era assim uma potência da Jules Rimet.

Desde os primeiros momentos sentiu-se que o Rei era um falso defunto do futebol ou, mais do que isso, um salubérrimo defunto, a explodir de saúde. Aliás, recuando um pouco, eu poderia falar do jogo recente, aqui, no Mário Filho, contra a Áustria, onde Pelé foi maravilhosamente Pelé. Mas o que importa, de momento, é a nossa estreia de quarta-feira. Foi, em primeiro lugar, um homem isento de idade, isento de tempo, com uma vitalidade de 17 anos. Defendeu e atacou, estava em todas as posições ao mesmo tempo. Inventou jogadas que nenhum outro jogador faria, em qualquer tempo.

Foi no primeiro tempo? Não: — no segundo. Exatamente, no segundo tempo. l x l ainda no marcador. Recomeça a partida e Pelé estava ainda no campo brasileiro. Apanha a bola. E, súbito, recebe a visita do próprio gênio. Viu que o goleiro tcheco estava fora de posição, muito adiantado. Fez, então, o que não ocorreria a ninguém. De onde estava, deu um prodigioso tiro de cobertura. A TV, que não sabe fantasiar e tem o escrúpulo da mais exata veracidade, descreveu-nos o lance.

A câmera, numa tomada por trás do gol, mostra toda a curva implacável da bola. Por um momento, ninguém entendeu. Por que Pelé não passou? Por que atirava de tão espantosa distância? E o goleiro custou a perceber que era ele a vítima. Seu horror teve qualquer coisa de cômico. Pôs-se a correr, em pânico. De vez em quando, parava e olhava. Lá vinha a bola. Parecia uma cena d’Os três patetas. E, por um fio, não entra o mais fantástico gol de todas as Copas passadas, presentes e futuras. Os tchecos parados, os brasileiros parados, os mexicanos parados — viram a bola tirar o maior fino da trave. Foi um cínico e deslavado milagre não ter se consumado esse gol tão merecido. Aquele foi, sim, um momento de eternidade do futebol.

Pelé nunca foi tão alto no seu gênio. Mas por que fez isso? Simplesmente, ali o Rei se vingava das nossas vaias. E não só ele: — também o escrete, todo o escrete. Bem sei que as hienas da crônica ainda uivam contra a defesa. “Há falhas, há falhas”, rosnam as hienas (nas minhas crônicas as hienas rosnam). Lendo certos colegas, eu penso num velho episódio. Estava eu em Teresópolis, num edifício de apartamentos. Desci com a cachorrinha. Fazia uma diáfana manhã parnasiana, de um azul de soneto. No jardim, eu tremia. E, de repente, lá da janela, um vizinho pôs-se a esbravejar. Sabem por quê? Porque a cadelinha acabara de sujar o gramado. E, então, o sujeito achou que a porcaria mínima era mais importante, mais transcendente do que o céu, a floresta, a luz, as fontes, os pássaros. Assim fazem os cronistas que esquecem uma exibição deslumbrante para catar falhinhas que têm, cada uma, o tamanho de uma pulga.

Amanhã jogaremos com a Inglaterra. Eu sei que a Inglaterra é grande. Mas nós somos maiores, porque somos Brasil, imensamente Brasil, eternamente Brasil.

O Globo, 6/6/1970

(1) Título sugerido pela edição do livro À sombra das chuteiras imortais (Companhia das Letras, 1993). A crônica foi publicada originalmente na coluna “As confissões de Nelson Rodrigues” com o título “O grande sol do escrete brasileiro”. (N.E.)

(2) A Revista do Rádio, lançada por Anselmo Domingos, circulou de 1948 a 1970. Uma das mais famosas publicações da época, o periódico é um dos símbolos da chamada “Era do Rádio”

Clique neste link e confira arquivo em pdf com a íntegra do livro "A Pátria de Chuteiras"

Desenvolvido com o CMS de código aberto Joomla