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Confira o 30º texto da série de crônicas de Nelson Rodrigues
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- Publicado em Quinta, 01 Maio 2014 17:28
O portal do Ministério do Esporte publica até o mês de junho, às vésperas da Copa do Mundo, uma série de crônicas escritas por Nelson Rodrigues entre as décadas de 1950 e 1970. Os textos foram publicados no livro “A Pátria de Chuteiras”, lançado em 9 de dezembro pelo ministro do Esporte, Aldo Rebelo.
São 40 crônicas selecionadas pelo próprio ministro em um trabalho de pesquisa de mais de um ano. O futebol foi a metáfora utilizada por Nelson Rodrigues para a apresentação e a divulgação de um Brasil eficiente e vitorioso.
Confira abaixo a 30ª crônica da série: “Momentos de eternidade”. O site do ministério publica dois textos por semana, aos domingos e às quintas-feiras.
“Sempre disse que seus jogadores têm uma saúde de vaca premiada. Já começo a achar que até nisso levamos vantagem; que a saúde de vaca premiada temos nós.”
Momentos de eternidade (1)
Amigos, nenhum outro escrete no mundo podia oferecer o futebol que os nossos jogadores ofereceram ontem. Não esqueçam que, aqui, vários cronistas fizeram verdadeiro terrorismo com o quadro da Tchecoslováquia (2). O nosso adversário era fabulosíssimo, ao passo que o nosso pobre jogo era antigo, obsoleto como a primeira sombrinha de Sarah Bernhardt. Promoveram os tchecos como se fossem os fantasmas da Copa.
E que vimos nós? Um desenho, uma pintura, um tapete bordado. Ganhamos de 4 x 1, e sem sorte nenhuma. Terminamos o primeiro tempo empatados por 1 x 1. E o justo, o certo, o correto é que tivéssemos chegado ao fim dos 45 minutos iniciais com dois gols de vantagem e, portanto, 3 x 1. Mas no segundo tempo veio a tremenda explosão. Amigos, vocês viram a TV, ouviram o rádio: — o Brasil deu um banho de bola num dos mais formidáveis concorrentes da Copa. Não há nada melhor no futebol europeu do que o time que, ontem, dobrou os joelhos diante do gênio dos nossos craques.
Vejam como são as coisas. Os nossos jornais de ontem, em sua maioria, não demonstraram o menor otimismo; limitaram-se a vender depressão aos seus leitores. Apresentaram as fotografias de 58 ou de 62? Não. Estavam muito mais interessados em relembrar, pela imagem, 54 e 50. Vários estamparam a nossa entrada em campo contra a Hungria, na Suíça. Tomados de horror, vimos o time nacional de cabeça baixa, o time nacional batido antes da luta.
E a resposta foi a maravilhosa exibição do escrete. A exibição brasileira foi trinta vezes melhor do que a finalíssima entre a Inglaterra e a Alemanha, em 66. Naquela ocasião, os 22 homens, segundo o figurino da pelada mais humorística, faziam o jogo de bola pra frente e fé em Deus. E, ontem, que fazíamos nós? Que fez esse escrete que saiu daqui vaiado, e repito: — esse escrete que se fez de vaias? Um jogo prodigiosamente articulado, sim, harmonioso, plástico, belo. Era uma música, meu Deus.
E, por isso, entendo que a cidade se levantasse em gigantesca apoteose. Aquele corso dos velhos carnavais voltou. As buzinas estavam de uma formidável histeria. Um turista que por aqui passasse e visse cinco milhões de sujeitos urrando havia de anotar no seu caderninho: — “Esta cidade enlouqueceu!” E, realmente, ficamos loucos. As pessoas se olhavam na rua e diziam umas para as outras: — “Somos brasileiros!” Ruiu, por terra, a sinistra impostura do futebol europeu. Sempre disse que seus jogadores têm uma saúde de vaca premiada. Já começo a achar que até nisso levamos vantagem; que a saúde de vaca premiada temos nós.
Choviam papel picado das sacadas, e listas telefônicas. Serpentinas, confete, lança-perfume. Ou por outra: — lança-perfume, não. Mas confete e serpentina, sim. Todos os automóveis incendiados de bandeiras. Mas o que eu achei mais bonito vocês não sabem. Eis o que aconteceu: — já que não lhe faziam a justiça, o escrete fez justiça a si mesmo.
No México, fizemos jogadas que foram, para o futebol mundial, momentos de eternidade. E Gérson? Quanta gente o negou? Quanta gente disse e repetiu: — “Não tem sangue! Não tem coragem! Não tem sangue, não tem coragem!” O vampiro de Düsseldorf, que era especialista em sangue, se provasse o sangue de Gérson, havia de piscar o olho: — “Sangue do puro, do legítimo, do escocês.” E não foi só a coragem indomável. Impôs-se como a maior figura da jornada. Seus passes saíam límpidos, exatos, macios. Em momento nenhum deixou de ser um virtuose, um estilista. E a bomba santa de Rivellino que abriu o caminho da vitória? Quando os tchecos fizeram a falta, noventa milhões de brasileiros rezaram: — “Rivellino, Rivellino, Rivellino!” E ele cobrou o foul de uma maneira genialíssima. Com a violência do tiro, a bola deixou de ser redonda, assumiu a forma do ovo e o goleiro adversário foi dramaticamente batido.
E o gol de Pelé? Gérson enfiou aquela espantosa bola comprida. O sublime crioulo a matou no peito e fez uma obra-prima de gol. Quanto ao gol de Jairzinho, abalou o Campeonato do Mundo. Driblou um, mais outro, outro mais, ainda outro e enfiou no canto. E a alma da rua voou pelos ares. Eu vi a grã-fina das narinas de cadáver cair de joelhos, no meio da rua, e estrebuchar como uma víbora agonizante.
O Globo, 4/6/1970
(1) Título sugerido pela edição do livro À sombra das chuteiras imortais (Companhia das Letras, 1993). A crônica foi publicada originalmente na coluna “À sombra das chuteiras imortais” sem título. (N.E.)
(2) Brasil 4 x 1 Tchecoslováquia, 3/6/1970, em Guadalajara. Estreia do Brasil na Copa do México. (N.E.)
Clique neste link e confira arquivo em pdf com a íntegra do livro "A Pátria de Chuteiras"